Victor Missiato
O ano do bicentenário da Independência do Brasil ocorrerá em meio a uma série de embates políticos acerca das identidades nacionais e o modo como elas são reconstruídas e apropriadas de acordo com os diversos interesses. Imerso a um processo global de lutas identitárias e movimentos sociais que defendem a inserção de novos atores no universo da política, o Brasil, por conta de sua múltipla diversidade étnico-cultual, sua dimensão continental e sua cultura política democrática, possui um papel importante na construção de um mundo mais cosmopolita. Apesar de sua histórica posição periférica enquanto um sistema capitalista tardio, o Brasil sempre esteve presente nos processos de modernização ocidental, enquanto Monarquia e República. Identificar-se enquanto brasileiro e brasileira, portanto, traz consigo um caldo cultural de tremenda riqueza e complexidade.
Todavia, desde a formação do Brasil enquanto um Estado-nação moderno, quando este processo foi se desenvolvendo ao longo do século XIX, a criação da nossa nacionalidade esteve ancorada a visões estereotipadas acerca da construção da chamada civilização brasileira. Dos teóricos defensores do embranquecimento da população no século XIX aos artistas e intelectuais da Semana da Arte Moderna de 1922, passando pelos “heróis” militares da República ao “Pai dos Pobres” interpretado por Getúlio Vargas, o Brasil sempre evitou pensar a modernidade de acordo com suas diferentes realidades sociais. Em outras palavras, o Brasil demorou muito para se interiorizar, tanto geográfica quanto socialmente. Esse sentimento de tempo perdido nunca abandonou o imaginário brasileiro, do “complexo de vira-lata” ao “país do futuro”.
O fato de o Brasil demorar a reconhecer seu interior não significa que este terreno físico e imaginário não foi utilizado como instrumento de trabalho forçado até o século XIX e mão de obra barata no século XX. Antes de a escravidão africana chegar aos portos brasileiros, a escravidão indígena se fez presente desde os primeiros anos de colonização. No século XVI, os cativos indígenas foram a maioria, apesar da escravidão negra já se fazer presente. Desde o princípio, portanto, o trabalho se sobrepôs ao direito de propriedade no Brasil. A existência ou sobrevivência do indígena ficou condicionada ao seu trabalho, ocasionando diversos conflitos, mortes em batalhas e, principalmente, mortes por doenças. De acordo com os estudos da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, juridicamente, desde os tempos coloniais, os indígenas possuíam direitos sobre terras, como no Diretório dos Índios (1758), elaborado no período de administração pombalina. Na formação do Brasil Independente, José Bonifácio se utilizou desse princípio para relacionar propriedade e justiça nas terras indígenas. As constituições republicanas, incluindo a atual Carta de 1988, sempre defendeu as garantias às terras indígenas. No entanto, tais distribuições sempre reproduziram a lógica do valor-trabalho, demarcando os territórios economicamente menos atrativos, de acordo com cada ciclo econômico mundial. A cobiça sempre suplantou a justiça no Brasil. Atualmente, uma nova onda de conflitos entre indígenas e grileiros ameaça a segurança pública nacional, apesar de os grandes centros urbanos não se mobilizarem em favor de uma justiça que possa preservar a cultura indígena e sua capacidade produtiva para gerir suas terras conforme seus interesses, auxiliando, ao seu modo, no próprio desenvolvimento nacional.
Constitui-se, portanto, um Brasil que ainda visualiza seus indígenas como índios, ou seja, habitantes de uma Índia imaginária, que não pertence ao Brasil. Apesar de essas políticas oficiais tentarem construir um Brasil desigual e artificial, calcado em ideias que nunca se sustentaram enquanto um sistema ou uma cultura política, os movimentos em busca de um Brasil real, diverso, plural, democrático e republicano nunca abandonaram suas lutas e, desde 1822, sempre construíram caminhos para um país mais equânime, justo e reconhecidamente mais complexo.
Victor Missiato é professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré — Internacional.
Sobre os Colégios Presbiterianos Mackenzie
Os Colégios Presbiterianos Mackenzie são reconhecidos, hoje, pela qualidade no ensino e educação que oferecem aos seus alunos, enraizada na antiga Escola Americana, fundada em 1870, por George e Mary Chamberlain, em São Paulo. A instituição dispõe de unidades em São Paulo, Tamboré (em Barueri-SP), Brasília (DF) e Palmas (TO). Com todos os segmentos da Educação Básica – Educação Infantil (Maternal, Jardim I e II), Ensino Fundamental e Ensino Médio, procura o desenvolvimento das habilidades integrais do aluno e a formação de valores e da consciência crítica, despertando o compromisso com a sociedade e formando um indivíduo capaz de servir ao próximo e à comunidade. No percurso da história, o Mackenzie se tornou reconhecido pela tradição, pioneirismo e inovação na educação, o que permitiu alcançar o posto de uma das renomadas instituições de ensino que mais contribuem para o desenvolvimento científico e acadêmico do País.