Por Marcello M. Gabbay
Professor Doutor em Comunicação e Cultura e Especialista em Psicologia Analítica. Docente nos cursos de Comunicação & Arte da Universidade São Judas . Autor dos livros “Comunicação Poetica e Música Popular” (Ed Appris, 2017) e “Música Estranha” (Ed. Paka-Tatu, 2021).
A morte de Zé Celso Marinez Correa, um mês depois de seu casamento com Marcelo Drummond, causou espanto no mundo artístico brasileiro. Guardadas as diferenças estéticas, junto com Augusto Boal e Amir Haddad, Zé Celso era um dos últimos nomes de realizadores de teatro de sua geração, de artistas do chão, da cena em meio à luzes, cabos, instrumentos, panos, adereços e corpos.
Zé Celso e o Teatro Oficina eram a cara de uma linguagem fundada no tempo mais ácido de nossa cultura: os anos da Ditadura Militar. Num processo de ruptura doloroso e espetaculoso, como relembra Caetano Veloso em sua autobiografia “Verdade Tropical”, tanto o pessoal da arte conservadora como o pessoal da CPC da Une apresentavam discursos esgotados pelo excesso de tradição literária. De um lado um resquício obsoleto do romantismo novecentista, de outro uma arte de inspiração marxista comprometida com a política social. E no meio disso, uma retomada da alma antropófaga cunhada por Oswald de Andrade nos anos 1920 e só agora novamente digerida pela geração de Zé Celso, Caetano, Helio Oiticica, Augusto de Campos e Décio Pignatari.
No mesmo ano em que surgia a Tropicália, com o Panis et Circensis de Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, Os Mutantes e Rogério Duprat, e em que Oiticica apresentava seu labiritno Tropicália no MAM do Rio, Zé Celso montava “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, para selar o movimento de um tropicalismo autodevorativo, onde as estéticas afroameríndias, a canção popular, o rock, a trapaça e a decadência habitam o mesmo chão, pois no espectro psicológico e estético da arte tropicalista não há distinção clara entre o bem e o mal, entre o claro e o escuro. Essa é uma preocupação que não compete a Eros, o deus do teatro profundo brasileiro.
Daí pra frente surgiram montagens inesquecíveis da cena de Zé Celso. “Roda Viva”, de 1968 foi o marco da resistência – ou reexistência, como gostava de corrigir Zé – com a invasão do espetáculo pela polícia, vitimando atores e atrizes do elenco com violência física e moral. Zé Celso se exilou em Portugal, enquanto Caetano e Gil estiveram em Londres, Chico foi para a Itália, Ferreira Gullar esteve na Argentina e no Chile. Na volta, depois de um autoexílio doméstico, surge o Teatro Oficina, acrecentado recentemente do sobrenome Uzyna Uzona.
O prédio do Teatro Oficina foi projetado no bairro do Bixiga, de São Paulo, por Lina Bo Bardi em 1992. Em 2017, o espaço foi palco de uma disputa representativa tanto da importância do Oficina para a cultura viva brasileira, como da crise urbanística por que passam cidades como São Paulo. Um imbróglio jurídico colocou a sede do Teatro, hoje tombado pelo IPHAN, na mesa de negociações entre a companhia de Zé Celso e o empresário e apresentador Silvio Santos. O então prefeito de São Paulo João Dória terminou por sugerir às duas partes que transformassem o teatro em um mall. A visão de cidade privatizada enquadraria o teatro, todo projetado como espaço transparente e aberto, dentro das quatro paredes de um shopping center, onde a “lei do silêncio” é um imperativo.
O fato lembrou as leis de costumes implementadas nas cidades de grande concentração de presença estética africana, no século XIX, que proibia batuques, “bulhas e vozeiras” em Belém, Salvador e Rio de Janeiro. Zé Celso – à altura do absurdo da situação – apareceu vestindo um enorme poncho em cores tropicais, como um grande papagaio, para sentar na mesa de negociações impossíveis, numa grande performance sobre a eterna disputa entre o teatro e a ganância do progresso.
Mesmo aí Zé Celso estava sempre sorrindo. Expondo o absurdo e a maravilha de viver. Pois no dia da morte de Zé, um grupo de vereadores da cidade de São Paulo anunciou que o projeto para o Parque Municipal do Bixiga, a ser localizado na área antes em disputa, ao lado do Teatro Oficina, deverá mesmo sair do papel, podendo até ser renomeado Parque Zé Celso.
Recentemente, o Teatro Oficina vinha reencenando algumas de suas montagens mais emblemáticas, provando não só a pertinência dos temas – o absurso da vida brasileira, a delícia da contradição – mas principalmente sua capacidade de renascimento, de reinvenção. Em 2015 remontaram “Pra dar um fim no juízo de Deus”, apresentada primeiramente nos 100 anos de nascimento do escritor maldito Antonin Artaud, em 1996, para quem o teatro era manifestação da crueldade e da peste. Em 2018 remontaram “O Rei da Vela”, e em seguida “Roda Viva”. Mesmo para quem participou das encenações anteriores, revê-las era ao mesmo tempo uma expriência inédita e um retorno ao mesmo lugar. Isso porque o teatro de Zé Celso era um teatro ritualístico, e como todo ritual, uma representação do eterno retorno.
A temática do retorno, que nos leva ao sentido da própria vida, retoma também a circularidade urobórica dos povos ancestrais. A existência como uma enorme Cobra Grande que debvora o próprio rabo, ressurgindo eternamente. Devorar-se para morrer e poder assim renascer novo, ser outro sempre e ser o mesmo. Ideal persseguido por Oswald de Andrade, que viveu no tempo errado, como qualquer poeta de fato, extemporâneo. Zé Celso também viveu no tampo deslocado, mas viveu mais, deixou uma geração de pessoas de arte e de teatro. Deixou sua pegada eterna nas ruas maltrapilhas da cidade.
Não à toa, o Teatro Oficina Uzyna Uzona publicou sobre sua morte: “nossa fênix acaba de partir pra morada do sol”. A fênix como simbolo do eterno retornar. Zé Celso retornou para a morada dos bacos, elfos, tartufos, momos e curupiras. Com tamanha energia do viver, no alto dos seus 86 anos, só mesmo uma catástrofe poderia tirar Zé Celso de nós. E assim foi.
Que o Brasil jamais esqueça deste homem de teatro e faça de sua pegada poesia da carne. Evoé…