Por Annelise Godoy – Presidente do Movimento Sou 1 de 11 Milhões de Trabalhadores da Cultura
APÓS APROVAÇÃO DA PL 7955 NO DIA DE TIRADENTES, A CULTURA SENTE AFROUXAR UM POUCO A CORDA DE SEU PESCOÇO, MAS É PRECISO ENTENDER O JÁ QUE FOI FEITO E COMO. E O QUE SERÁ FEITO COM OS RECURSOS, POR QUE A LUTA CONTINUA.
Acordei com fome de números para a Cultura depois de um dia seguindo decretos, aprovações, prorrogações e recursos a seu favor.
Por quase 12 horas vi um número imenso de artistas e profissionais da cultura se superando para assistir à sessão interminável da Comissão de Cultura e Educação da Câmara dos Deputados. Meu balde de vômito aqui ao meu lado foi trocado duas vezes ao longo do dia pelos engulhos constantes ao ouvir os argumentos nocivos, mesquinhos e cheios de irrealidades de bancadas como o PSL e o Novo que claramente estão contra o povo, contra a cultura, a saúde da população e contra o desenvolvimento do país em várias questões de interesse público. Mas aqui não vamos falar de política partidária, mas sim política cultural, aquela que ninguém sabe o que é, por que não existe mesmo.
O que existe é um desrespeito estrutural pelo setor cultural e por seus milhares de trabalhadores em todo o país, um dos maiores setores em empregabilidade, geração de tributo e renda, mas visto como marginais do processo econômico, mesmo representando 2,6% do PIB do país.
Mas, vamos voltar aos Decretos, a começar pelo 10.683 com a publicação do Governo Federal prorrogando prazo até 31.12.2021 para entrega de projetos e 31.03.2022 para Prestação de Contas para os Estados e Municípios, não diretamente para os profissionais contemplados da Lei Aldir Blanc.
Por meses, durante um dos piores momentos da pandemia, toda a classe cultural ficou mendigando através dos inúmeros movimentos, entidades, políticos e personalidades para que os prazos fossem prorrogados, evitando produções com aglomeração. Ainda temos pela frente mais luta, para vermos se todos os Municípios e Estados decretam a prorrogação a 9 dias do prazo final.
Então aqui vai a Dica 1 de Política Cultural: A Política Cultura Desumana de Produtividade da Arte, pois praticamente todos os Estados, Municípios e a própria Federação foi permissiva em deixar a Cultura no limite, já causando grande risco ao setor que realizou centenas de projetos para garantir esses prazos desleais.
Também como parte das celebrações e lembrando o enforcamento de Tiradentes, a PL 7955 foi aprovada no início da madrugada de hoje, soltando um pouco a corda do pescoço do setor, com a liberação do uso do recurso ainda não aplicado pela Lei Aldir Blanc no valor de R$ 720 milhões (30% do valor total liberado pela Lei).
Dica 2: A Política Cultura do Despreparo e Falta de Seriedade de Gestão Pública para o Setor Cultural. A Lei Aldir Blanc escancarou a falta de preparo do país para apoiar este setor que há 30 anos se submete a Leis de Incentivo com rígidos procedimentos para inscrição, com cadastros feitos em todas as instâncias: Municipais, Estaduais e Federais, com Secretarias de Cultura em qualquer rincão do país, mas que na hora de repassar benefícios, se mostrou desestruturado, com profissionais incapacitados, sistemas desprezíveis para atendimento, uso político do erário contra o setor e com mais de 1.300 cidades sem competência sequer de pedir o auxílio.
Mas, agora que foi aprovada a liberação destes milhões excedentes, temos que saber o que foi feito com a primeira parte da Lei Aldir Blanc que nem todo mundo viu e muito menos entendeu.
Sabemos que a grande maioria do setor da cultura efetivamente odeia números. Mas são os números que podem trazer quase um manual de reconhecimento de ideologias, políticas, valores e pensamentos que norteiam a não Política Cultural atuante.
E serão os números que nos orientarão a pressionar os Estados e Municípios a serem mais democráticos, coerentes com os milhares de trabalhadores do setor e suas necessidades, sem margem de erro ou paixões!
Vamos, portanto, analisar o maior Estado em produtividade cultural e cortar em pedaços os números publicados da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, que gerencia recursos para 645 municípios, para começarmos a ver especialmente a sua lógica.
Sabemos que os números publicados pela SECEC são sempre colossais, porém ao irmos para os detalhes de cada decisão tomada, valores investidos, critérios utilizados e conceitos implícitos, vemos toda a fragilidade na condução das diretrizes do PROACLAB, especialmente diante de um período de tanta angústia para o setor.
À partir de um vídeo distribuído “Você Viveria Sem Cultura?”da SECEC São Paulo esta semana foi apresentada, de forma quase esquizofrênica e com sua pompa já conhecida, diversos dados que compõe “seu” investimento de R$ 265,5 milhões pelo PROAC LAB em 25 linhas de atuação para 4.095 projetos, já lembrando que a Lei Aldir Blanc é um recurso federal. O vídeo mostra todas as linhas expostas em velocidade cósmica, jorrando informações e dados quase para não serem lidos, mas que, pacientemente, tive a determinação de “destrinchar” para um leitor que não seja do setor.
Para entender a Política Cultural utilizada,vamos ler os dados não através da lógica das “linhas” estabelecidas, mas pela reunião dos investimentos por segmentos da cultura e como são ou não percebidos.
Tornando uma ampla análise em números conclusivos, abaixo segue o resumo dos recursos pelos treze segmentos definidos e pela quantidade de projetos contemplados:
Olhando os números acima, vamos imaginar como foram definidas as relações de premiações, por exemplo para o Teatro, Música, Dança, Circo e Literatura: Todos receberam em média R$50 mil por prêmio, com exceção da Música que foi um pouquinho mais e Circo, um pouco menos (tristemente previsível).
Mas, como pode ter sido determinado, por exemplo, que o teatro teria 874 contemplados, com R$61 milhões de investimento, contra 204 projetos da Dança, ou seja 4 vezes menos (em projetos e recursos)? De onde partiu esta métrica? Quantos atores, dançarinos e espaços dessas atividades temos no Estado, alguém sabe dizer realmente? Foi feita até a tentativa de minimizar este entendimento dividindo os recursos entre Teatro (adulto?) e Teatro Infanto-Juvenil.
Vamos para a Música,com 444 projetos, metade do investimento para o teatro, como se o Estado de SP tivesse esta proporção. Mas daí vemos que a Música recebeu metade do valor da Dança e do Teatro pelo prêmio de Histórico e Realização. Isso realmente me deixou confusa sobre o princípio utilizado, se é que houve algum.
Na Literatura, a análise fica ainda mais incoerente, com 100 projetos (prêmio R$50 mil), talvez demonstrando que a Secretaria acredita que o efetivo de pessoas envolvidas em projetos literários é, de fato, 8 vezes menor que em teatro. E só premiou Histórico de Realizações. Nada para novas produções.
Por que premiar somente 100 autores com valores tão grandes e não democratizar o prêmio entre tantos nomes representativos do Estado? Qual seria a sua hipótese para isso?
Agora temos que dar um rodopio antes das bolas serem jogadas para cima outra vez, pois fica ainda mais complexo de avaliar por que o edital de Games, Realidade Virtual e Ampliada recebeu em média R$ 200 mil para cada um dos 24 projetos, enquanto Cultura Popular, com 197 projetos, recebeu uma média de R$ 25 mil.
Sabemos que o trabalho da Cultura Popular envolve invariavelmente um efetivo enorme de pessoas, a maioria carentes, com projetos continuados de grande resiliência. Os Games e RV&RA são projetos já incorporados em ações empresariais, individuais ou de pequenos grupos executores, fora o envolvimento dos gigantes da indústria eletrônica que só ampliaram neste período de isolamento.
Este comparativo talvez seja o que mais escancara a percepção distorcida do fazer cultural desta Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo com o Sr. Sérgio Sá Leitão como Secretário!
A própria Secretaria, ao iniciar o processo, admitiu que não tinha dados efetivos da distribuição das atividades artísticas do Estado. Assim, toda a decisão sobre distribuição de valores e projetos que deveria ter partido de números concretos, passou a representar a visão política, empírica e até quase pessoal da Secretaria sobre o setor. Fica claro que as definições foram baseadas em análises arbitrárias e sem suporte técnico, o que revela ainda mais o pensamento do gestor ou da gestão.
Vejam também o recurso para 12 museus contemplados entre 645 cidades com uma média de prêmio de R$73.300,00 para cada um deles, ou seja, um terço do prêmio de um gamer.
Mas o sentimento que fica é de que para definir na correria sobre as linhas do ProacLab foi passada uma régua no valor de R$ 50 mil para coisas absolutamente diversas, deixando-me totalmente curiosa quanto se foram critério específicos, científicos, dirigidos ou simplesmente preguiçosos, além de pouco democráticos.
E, escandalosamente, por fim, a distribuição de uma média de R$5 mil para 1.233 projetos de licenciamento e registros de produtos prontos, para serem utilizados na plataforma da própria Secretaria, através do #culturaemcasa, com quase R$ 12 milhões de investimentos. Os projetos certamente são oriundos de editais ou produções da Secretaria e já poderiam prever estas liberações dentro dos próprios editais. Que projetos foram esses, para quem foi, temos 1.233 projetos nesta plataforma agora?
Vale citar aqui que a Lei Emergencial do Estado de São Paulo com uma população de 44 milhões de pessoas, contemplou apenas 2.500 trabalhadores da Cultura pelo Inciso I, com 3 parcelas de R$ 600. Esses contemplados representam o número dos mais necessitados do setor, mas são somente o dobro dos que foram premiados pela plataforma #culturaemcasa e receberam um terço do valor.
A realidade é que a grande camada dos mais necessitados ficou de fora da Lei Aldir Blanc, recebendo uma migalha, e a maioria sem apoio e sem condições de participar dos editais complexos, cheios de exigências formais de documentação e textos extremamente mal escritos e cruelmente oferecidos em formato digital.
Dica 3 de Política Cultural : Pouco sentido democrático e de acolhimento, mas muita produtividade (a qualquer custo). Aqui no Estado foi o contrário do que ocorreu em outras regiões do país, onde a maioria dos Estados utilizou 80% dos recursos para distribuição de valores menores para ampliar o alcance. A opção aqui foi a de subordinar 80% dos recursos para curadorias que, além de terem causado atrasos, reverteram o processo de emergência, em produção de eventos e produtos, que é a sua maior característica da Política de gestão, todos carregando sua marca, com orientações difusas até de como aplicá-la.
Números destrinchados trazem, sim, uma visão de conceito, processo, política e legitimidade, sem falar de análises mais profundas quanto à distribuição destes projetos no âmbito do Estado, a relação de valores de produção para diferentes segmentos, quantidade de cidades atendidas e, acima de tudo, dos valores distribuídos versus a relação de contemplados, já que o momento seria para os trabalhadores terem segurança alimentar e não para alimentar o mercado com 4 mil projetos concomitantes, cheios de selos de governos, colocando a si mesmos em risco de vida para executá-los, diante da pandemia.
Em São Paulo, a Lei Aldir Blanc atingiu menos de 10% do número mínimo de cadastrados do próprio governo. Mesmo imaginando que um terço dos projetos aprovados contratassem mais 30 pessoas para execução, não chegaríamos a uma fração da plataforma de trabalhadores, artistas, técnicos, artesãos e produtores que fazem parte deste universo.
Nenhum destes números bate com a euforia dos resultados publicados e do próprio setor cultural, que acredita que a Lei Aldir Blanc realmente salvou grande parte do mercado. Certamente ajudou e ajudará novamente, mas esse números mostram como o Estado fez suas opções. E assim como foi feito em todo o país.
Temos que destrinchar essa pirotecnia de números que alimenta uma política cultural megalômana, insensível e voltada aos resultados finais e eventos. Precisamos nos alimentar de entendimento de como Políticas Culturais são feitas sem uma palavras, mas como podem ser visíveis pelos números.
Nada e nenhum recurso é destinado por acaso. Tudo foi feito à luz da Política Cultural vigente das Secretarias de Estado e Municípios, assim como está acontecendo o desmonte pela Secretaria Especial de Cultura.
Acho muito importante o projeto de pesquisa aprofundada sobre a Lei Aldir Blanc que o Movimento Sou 1 de 11 Milhões pretende fazer para realmente esclarecer o que somos nessa engrenagem psicótica de distorções e falácias do setor da Cultura. Temos que saber de fato para onde foi destinado o dinheiro deste setor, em cada cidadezinha, pois ainda estamos dilacerados.
Agora, temos que liderar a discussão da aplicação deste resíduo de R$720 milhões. Juntos somos #11 milhões e os Secretários de Cultura precisam saber disso!!! As opções também dependem de nossa força conjunta de luta, acompanhamento e discussão de cada ação de gestão em todo o país.
Por isso adoro números, e você, não? Veja os números de sua cidade e vamos destrinchar juntos para ao menos compreendermos qual Política Cultural não é feita em nosso país!
Antes de fechar, sem dúvidas tenho que parabenizar os importantes legisladores através de seus mandatos como Vereadores de muitos Municípios, Deputados Estaduais e Senadores, que desde sempre apoiaram incondicionalmente as propostas e defenderam calorosamente os trabalhadores da Cultura, nos deixando ainda com alguma crença em nossa sociedade política e força para continuarmos.
Annelise Godoy
Annelise Godoy , Produtora Executiva. Foi Gerente de Comunicação no Instituto Alfa de Cultura, para o ABN Amro e CervBrasil. Diretora executiva na Associação dos Amigos do MIS SP e Philarmonia Brasileira Produções. Em 2019 foi Coordenadora do Curso de Produção Cultural na UNEMAT (MT). Hoje Presidente da Associação Movimento Nacional Sou 1 de 11 Milhões de Trabalhadores da Cultura.