Os direitos dos herdeiros e as exceções que aquecem as discussões sobre obras póstumas no mercado musical
O ano de 2022 iniciou com terreno fértil para discussão e esclarecimento de dúvidas sobre a questão do direito autoral e do direito de personalidade de artistas pós-morte. No fim de janeiro, a cantora Elza Soares, eleita a voz do milênio, faleceu. Dois dias antes, a artista havia gravado um DVD no Theatro Municipal de São Paulo, além de ter deixado um álbum inédito. Também em janeiro, chegou aos cinemas Eduardo e Mônica, filme baseado na música de mesmo nome, composta por Renato Russo. Na última semana, começou a partilha dos bens de Marília Mendonça; entre eles, músicas que figuram entre as mais tocadas nas principais plataformas de streaming. Antes mesmo da partilha ter início, divulgação de Naiara Azevedo sobre lançamento de música em parceria com a sertaneja e alteração em imagens do videoclipe causaram controvérsia entre a atual participante do BBB e a família da sertaneja. Por fim, o clipe voltou ao original e o lançamento foi liberado pela mãe de Marília Mendonça.
De acordo com a legislação brasileira, o autor de uma obra intelectual tem direito autoral sobre esta por 70 anos. Após esse período, a obra cai em domínio público. Caso o artista venha a falecer neste período, os direitos passam para os herdeiros. “Quando o autor morre, os herdeiros ocupam o direito de defender a moral do artista, se opor a modificações da obra e autorizar a realização de obras derivadas. É o caso do filme Eduardo e Mônica, baseado na música do Renato Russo. A composição recebe um novo uso, que é ser o enredo de um filme. Em todos os casos, é preciso um contrato, uma autorização por escrito. No caso das músicas, em geral, precisa da autorização dos herdeiros e da gravadora”, explica a advogada e sócia do escritório Kasznar Leonardos, Isis Moretti.
Na indústria fonográfica, é comum o interesse por lançamentos póstumos, tanto de músicas inéditas que não foram lançadas antes do falecimento por questões de cronograma, quanto de demos e materiais que não foram utilizados em discos anteriores. Por outro lado, esses álbuns póstumos costumam gerar polêmicas e divergências. Segundo Isis Moretti, a maioria das gravadoras vem tentando se resguardar por meio contratual. “As gravadoras estão incluindo nos contratos cláusulas prevendo que, mesmo que o artista morra, se a música estiver gravada, pode ser lançada. Nesses casos, o autor autoriza em vida o lançamento da obra a posteriori. Entretanto, muitos artistas não aceitam essa cláusula e, inclusive, se posicionam no sentido oposto, afirmando que não gostariam de lançamentos de demos após seu falecimento, porque não gostaram do resultado final e não querem que sejam divulgados”, afirma.
A vontade do artista é preservada nos casos em que o próprio autor deixa registrado por escrito que não quer que suas obras sejam reproduzidas após sua morte. Além da questão do direito autoral, o direito de personalidade, que envolve características individuais, como nome, imagem e voz do artista, também fica sob tutela dos herdeiros. Assim, para modificar uma obra com alteração em vozes ou utilizar imagens do artista falecido, é necessária autorização dos herdeiros, neste caso, mesmo após os 70 anos. “Na música, ainda temos os direitos conexos aos de autor, quando um intérprete que grava composições de terceiros. A Cassia Eller, por exemplo, gravou muitas composições do Cazuza e tem, portanto, direitos conexos aos de autor com relação a essas interpretações, além do direito de personalidade em relação à sua voz”, conclui Isis.